quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Quando Eu Estou Aqui


Quando eu estou aqui...

Conservatória é, certamente, das mais pitorescas cidades no interior do estado do Rio de Janeiro. As razões são inúmeras. O título de “Capital Nacional da Seresta” é uma delas.

Cada noite, sob o luar, seresteiros percorrem as ruas enladrilhadas cantando e declamando o próprio amor. As namoradeiras se espreitam no descanso das janelas para escutar as poesias e canções. Cenas quase barrocas. Quisera poder moldá-las.

“Seu” Fernandes, 75 anos, é seresteiro querido na cidade. Dedicou os últimos 20 anos na manutenção do Museu da Seresta, que guarda um acervo musical precioso. “A memória de José Borges deve ser honrada”, diz Fernandes. Ele se refere ao primeiro cancioneiro a se instalar na cidade. No final da década de 50, José Borges e seu irmão Jubert (que ainda está vivo, aos 87 anos) se sentavam na praça e cantavam até o amanhecer. As pessoas se aproximavam, cantavam juntas. Aos poucos outras vozes se fizeram ouvidas. O poeta e seus versos. O pintor com suas telas. O violeiro e suas cordas. Nascia a tradição cultural da cidade.

Enquanto “Seu” Fernandes relata os “causos” da pequena cidade, Dona Lúcia olha-o atentamente. Interrompe-o diversas vezes. “O senhor me desculpe!”. E passa ela a contar histórias inacreditáveis ocorridas ali. Não sem antes fazer o sinal da cruz. Passava o cortejo que velava o corpo de Dona Sarita, esposa do médico da cidade. As portas do comércio se fechavam conforme os amigos e familiares de Saritinha, como era carinhosamente chamada, seguiam rumo ao cemitério. Entoavam cantigas fúnebres. “Pessoa boa. Alma pura”, lamentou Dona Lúcia. Mas retomou logo a narrativa sobre o rico folclore local.

Lendas de uma fantasia deliciosa. Estórias (uso a palavra em respeito a João Ribeiro) para comer. Um universo de escravos e senzalas. Curandeiros e milagres. Seresteiros e amores eternos. Gilberto Freyre ficaria orgulhoso. Caio Prado Jr. torceria o nariz. Pena que Dona Lúcia é logo censurada pela filha, aflita para seguir o rumo de casa e receosa pela chuva que ensaiava uma tempestade daquelas. A aula de música com Maria Olímpia, esposa de “Seu” Fernandes tinha acabado. Agarrou a mão da mãe e seguiram as duas, fugindo dos pingos que já caiam.

A música “Ontem ao Luar”, de Catulo da Paixão, tocava num rádio antigo que transmitia a programação da única estação da cidade. O aparelho arcaico parecia padecer junto à canção. O cantor soava melancólico e podia-se quase imaginar sua expressão. “Quem está cantando sou eu”, revela “Seu" Fernandes. Com o olhar emocionado me entrega a cópia de seu mais recente livro, “Jardim dos Buquês”. Lê-se nas primeiras páginas: “Em Conservatória, as serenatas e serestas revivem em nossos corações, um tempo que não existe mais.”.

No pacato vilarejo, as crianças brincam nas ruas, os namorados compram algodão doce na praça, as moças puxam a barra da saia e os bilhetinhos de amor adentram as frestas das sacadas floridas. O sino da igreja convoca todos para a missa. E eles vão cantando. Desde a porta de casa.


Adendos:

Nos fins de semana, seresteiros locais e vindos de cidades próximas atraem os visitantes e a população local com as andanças pela cidade.

Em Conservatória, todas as casas recebem nomes de canções seresteiras. Estava hospedado na “Lábios que Beijei”, bem de frente à “Emoções”. Sugestivo para uma bela crônica.

Em tempo. Qualquer morador faz questão de diferenciar a seresta da serenata. “A seresta ocorre dentro do recinto. A serenata é sempre nas ruas. Mas ambas falam de amor”.

O nome da cidade, diferente do que a maioria imagina, não tem qualquer relação com a alma musical do local. Antiga área dos indíos Ariris, Portugal, ainda na época do império, instituiu ali um cartório para registro dos indígenas, que em terras portuguesas, recebe o nome de conservatório. Daí o nome.

Abraços para Gi e Cris. Companheiras de divagações eloquentes (sem trema!) e de risadas contextuais.


Texto de Diego Ponce de Leon

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Pouco Eu Não Quero Mais

Algumas pessoas – pessoas felizes irritantes – acreditam no poder do pensamento positivo. Elas estão satisfeitas por estarem aqui, seja lá onde quer que aqui seja e acreditam que tudo aconteça por uma razão. Isso os separa estreitamente dos teóricos conspiradores, que acreditam que tudo ocorre por uma razão, mas uma razão ruim (e possivelmente judaica).

Eu mesmo sou um apreciador do pensamento negativo. Pessimista por natureza. Acordo diariamente me perguntando a tragédia do dia. O que acaba me causando certa ansiedade, mas prefiro o cotidiano suscetível a desventuras em série, do que dias prolixos e tão vazios. Entretanto, nos últimos dias, minha voraz expectativa por desgraças diárias foi globalmente aniquilada.

Os americanos felizes resolveram estourar a bolha de crédito. As igualmente felizes instituições financeiras (corre pelos corredores, que andam um tanto quanto bucólicas e introspectivas nos dias mais recentes, uma ofensa para os ensolarados dias de outrora), soltaram no mercado falido mais verba que deveriam. Pobre Milton Friedman, cujas lições (e ascensão heróica) foram jogadas a esmo com a própria economia mundial e suas bolsas (Louis Vuitton). Ironicamente, grandioso para o esquecido Keynes, que livrou a América de amargar posições hierarquicamente inferiores no ranking mundial após a queda de 29, e que retorna de forma triunfal, protagonista, como se Don Corleone estivesse vivo. Abram as cortinas.

Destarte, sigo inócuo diante do colapso financeiro. Acordei hoje me perguntando, como sempre, qual poderia ser o ápice negativo do meu dia. Crise Financeira!!! Está lá. Feito, nada a ser questionado. Posso priorizar meus compromissos. Quem sabe tomar um chá, ler crônicas despretensiosas ou divagar sobre Christopher Campbell. Não há ninguém com câncer. Se morreu alguém, mero figurante. Todos ainda me amam. Só há a crise. E quem há de discordar?!

Eu lhes digo: os otimistas! Cegos (que o diga Saramago) e potenciais responsáveis por essa crise (afinal quem não poderia prevê-la?!), já tecem jornadas e roteiros cinematográficos (à la David Lynch), para que possam rapidamente superá-la. Hipócritas. Tenho pena. Aguardo ansiosamente pelo desfavorável. Meus dias florescem quase poéticos. A pedra de Drummond é velha conhecida.

Otimismo é analogia franca e escancarada de um pessimismo alegre. Grifo meu.

Desafortunadamente e tragicamente (pelo vosso sacrifício), terei que encerrar prematuramente meus vocábulos, que vale ressaltar, foram apenas proporcionados pela falta de preocupações alheias e consequentemente, por uma mente vazia que vagueia em busca de desfechos rodriguianos. As cortinas teimam em não fechar. Se lhes compete, bati meu carro ontem. Nada muito apocalíptico. Uma faísca de gozo (regojizo) precoce. Preciso passar na AIG. Na AIG! Adorei! Que venha o pior. Mal posso esperar.

Texto de Diego Ponce de Leon

Inspirado livremente nos textos do blogueiro conservador (sim, eu leio os dois lados) Mac Johnson.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

BENÇÃO DA DESPEDIDA


Abençoai-me irmãos.

A benção, Chico Buarque de Holanda. Sua graça e boêmia, parceiras constantes. As canções e as melodias. Ordenai: “vai meu irmão, pega esse avião”. Meros súditos hão de obedecer. Questiona “o que será do amanhã”, sem nos dar resposta concreta, mas acalenta a alma, quando emana que “será outro dia” e quem sabe, eu “morra de rir”.

A benção, Maria Bethânia e Caetano Veloso. Vossa irmandade santificada. Embora não invejo, pois da minha própria, certamente invejais.

Saravá!!!

A benção, Roberto Carlos. Na verdade, é justo e necessário, que se faça desse, a presença divina, pois nenhum outro atingirá tantos fiéis, como ele o fez. Cantastes a amizade simplória, mas intrinsecamente franca: “você meu amigo de fé, meu irmão camarada”.

A benção, Vinicius de Morais e todos os seus parceiros. Irmãos poetas, trovadores abençoados. Somente de suas fraternas graças, poderias nutrir-nos com um manto protetor tamanho, que somente dele, dependeria, se a vida não me presenteasse com dois anjos, pilares do que vivo.

Saravá!!!

A benção, Flora Figueiredo, poetisa. Singela nos vocábulos, cala-nos com precisão e profetizas:

“Quando chegarem,
subam ao ponto mais alto do lugar.
E então acenem.
De onde estiverem, quero enxergar
esse momento em que vocês vão constatar
que a vida vale grandemente a pena”

Glória ao pai, Antônio Carlos Jobim, maestro de todos nós. Abençoado sois e fizestes de seus irmãos, tenras criaturas. Descansai. Cuida dos meus irmãos agora. Cubra-os com sua santidade e dá-lhes força.

A benção, Bigo e Nem. Pelas lágrimas. Pelos ensinamentos. Por fazerem de mim, irmão. Irmãos coragem, irmãos tropicalistas, Irmãos Corsos e Roccos, irmãos Gallagher e Grimm. Los Hermanos. Blues Brothers. Irmãos Kaufman. Caetano e Gil. Tom e Vinicius. Tetê e Kiko. Eu,Rodrigo e Daniel. Entidades celestiais ainda não inventaram nada melhor. Pelas mãos dadas, pelos ombros de apoio. Pela amplitude do que representam e pela ausência que jaz.

A benção, Marcelo Camelo e sua áurea melódica maior que a minha. Sua simplicidade incômoda que atesta:

“vim só dar, despedida”.

Ide em paz.

Saravá!!!


Texto de Diego Ponce de Leon

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Lista Sem Valor


O jornalista Adriano Silva, colunista de Época, reproduziu recentemente uma lista de personalidades consideradas “overrated”. O termo britânico engloba qualquer assunto ou pessoa que receba atribuição superior a real valia. Ou seja, aqueles que talvez gozem de prestígio inabalável, mas que não mais façam jus ao elogio. A idéia foi conscientemente e reconhecidamente plagiada da revista Rolling Stone, que em sua edição americana incluiu entre os “super-valorizados” a cantora standard Barbra Streisand, vencedora de Grammys e detentora de vendas exorbitantes, mas que há alguns anos não produz nada inovador e chega a desafinar. Robert de Niro e sua performance prolixa de canastrão mafioso também foram criticados. Aparentemente, diz o periódico, o ator de personagens míticos como Scarface, não mais impõe qualquer pessoalidade aos novos tipos que incorpora e se restringe a repetir caras e bocas, que são velhos conhecidos do público.


Adriano enumera suas vítimas e nos convida fazer o mesmo. Aceitei o convite.


Eis a minha lista:


Gal Costa: a cantora baiana, peça fundamental no movimento tropicalista e pilar da cultura musical brasileira, perdeu-se no repertório e se mantém num ostracismo incômodo há alguns anos. A voz aguda característica não causa o mesmo impacto e a doce bárbara vive encostada na sombra de um passado brilhante, mas já distante. A igualmente importante colega de cena, Maria Bethânia, segue caminho inverso. Munida de uma maturidade explícita e de uma escolha impecável de canções, a irmã de Caetano usufrui de um prestígio digno e justo, construído a base de Tom Jobim e Chico, mas também de Almir Sater e Lenine. As poesias de Fernando Pessoa seriam até desnecessárias, mas adoçam ainda mais o mel da abelha rainha. A outra, dizem, nem mais a letra de “Meu nome é Gal” consegue lembrar.


Pelé: o rei do futebol brasileiro deveria ter se restringido a carreira esportiva. Os exemplos esdrúxulos que Pelé produziu do ridículo são inúmeros. Vide qualquer uma de suas entrevistas. Os erros de português, absolutamente superiores aos números de gols feitos. As excursões dignas de misericórdia na música. Os milhares de filhos reconhecidos e os que ainda estão por vir. E o brasileiro ainda estufa o peito para menosprezar Maradona, maior concorrente no futebol de décadas atrás (já se vão quantos anos, mesmo?!) e que não merece enaltecimento algum, diga-se de passagem, mas não brinda os argentinos com pérolas da ignorância popular. Os vícios são uma lástima. Mas, nossa maior droga, ainda é o próprio Edson Arantes.


Mamonas Assassinas: a irreverente banda, sucesso dos anos 90, produziu um único disco. Ponto. Não preciso escrever mais nada. O acidente tornou-os mártires. Sem causa ou ideologia. Leitores admiradores dos comediantes musicais possivelmente me desprezam neste momento, mas lembre-se que a lista trata de uma valorização extrema. Sem dúvida, as letras e melodias criadas por Dinho e Cia são de importância ímpar. Irônico, eu?! Imagina.


Paulo Coelho: o popularesco escritor de romances piegas disfarçados de auto-ajuda... Opa. Sem mais comentários.


Augusto Cury: reveja comentário acima acerca do pai do alquimista.


Numa sociedade sedenta por novos heróis e incapaz de produzi-los, talvez seja válido desmitificar certas lendas. As lendas, diferentemente dos mitos, são moldadas com o tempo e formulam-se a partir da imaginação do povo. Aparentemente os questionáveis dados fornecidos pelo governo que traz o pobre menos pobre e a classe média abraçando mais da metade da população brasileira, são verdadeiros. A massa passou a frequentar o cinema, ou pelo menos a comprar o dvd pirata para assistí-lo no aparelho comprado a prazo nas Casas Bahia. E adoram o que vêem. Se não fosse assim, estariam rindo da própria desgraça. Ou sou eu, imaginando?!

Vive-se um momento do favelado heróico. As referências supramencionadas são tão menores que o Capitão Nascimento ou o Zé Pequeno. Nada mais coerente. Corre pelos corredores da Cidade de Deus, que Gal está planejando uma aparição na seqüência do filme de Fernando Meirelles. Ele se recusa a pagar o cachê. Personagens para o Pelé não faltam. O roteiro será de Paulo Coelho e o argumento final de Cury. Sucesso absoluto. Em breve, na feira mais próxima de você. Os extras estarão recheados. Até o menino Josué, de Central do Brasil, tece depoimentos arrematadores.

Pensando melhor, talvez os “mamonas” tenham alguma importância. Afinal, no Brasil, melhor rir do que chorar.


E na sua lista, quem seriam os eleitos?!

Texto por Diego Ponce de Leon

terça-feira, 10 de junho de 2008

"Favas e Escrúpulos"


Favas e Escrúpulos

Estar diante de uma das mais emblemáticas figuras do cenário político nacional não foi tarefa fácil. A frieza e imparcialidade exigidas propiciam uma quase comoção ao encontro. O senhor sentado à minha frente luta por uma sanidade ameaçada pelos oitenta e oito anos vividos. Já não amedronta tanto. Jarbas Passarinho viveu a última década num ostracismo perturbador, desde que largou seu terceiro mandato como ministro. Os quarenta anos que nos separam do ano de 1968, que tornaram o ex-senador célebre na história política brasileira, lhe propiciam algumas faíscas de notoriedade. Ainda instiga questionar as razões que o fizeram concordar e ratificar a promulgação do Ato Institucional N° 5, que levou o país a sucumbir aos anos de chumbo subseqüentes. O Brasil conheceria sua hipocondria maquiavélica. Tornaria a tortura intrinsecamente ligada ao aparelho social reparador e produziria vítimas fatais. Vladimir Herzog foi torturado e morto. Gilberto Gil foi preso. Marília Pêra foi despida. Jarbas Passarinho assume a responsabilidade. E não se arrepende.

Uma senhora com ares domésticos me recebe no portão e pede para que eu aguarde. O coronel estava encerrando uma conversa e me receberia em seguida. A casa é simples. Os quadros tortos trazem figuras religiosas e telas barrocas. A mobília é antiga e ajudam a caracterizar o ambiente rústico e mal conservado. O arsenal militar aos poucos toma forma e torna-se perceptível a cada olhar. Certificações, honras ao mérito e medalhas de bravura estão exaustivamente expostas. Lê-se “Estado do Acre” em boa parte desses documentos, o que me faz pensar que o estado natal do entrevistado esteve orgulhoso de seu servo. A idade avançada contradiz os vários maços de Hollywood jogados sobre a poltrona. Não pude observar a coleção de vinis disposta ao lado. Ele me aguardava.

Calejado por um resfriado, Jarbas não oferece relutância em responder longamente minhas indagações. Inicia um longo discurso sobre o comunismo e a esquerda armada no país. Para fundamentar sua exposição mostra os diversos títulos socialistas que compõem a biblioteca que jaz em seu escritório. Vejo Marx, Webber, Guevara e Marcuse. Autores que influenciaram o movimento estudantil a insurgir contra o governo militar, do qual Jarbas fazia parte em 68. Didaticamente expõe todos os fatos que antecederam o AI-5, claramente justificando as atitudes que seriam tomadas posteriormente. Começo a questioná-lo abertamente acerca do tema.

Jarbas não tem qualquer arrependimento. Apenas lamenta que algumas de suas posturas possam ter sido mal-interpretadas no decorrer do tempo. Quando lhe pergunto se preferia não ter sido convocado para a reunião que resultaria no AI-5, responde categoricamente: “Preferia, não poderia!”. Assume uma responsabilidade passiva. Segundo ele, a pressão do Exército não lhe restava opções. Enaltece a postura de Pedro Aleixo e lamenta não poder provar os elogios que dirigiu ao advogado, único contra a promulgação, no decorrer da reunião. Diz ter concordado com o ato, na certeza de que sua duração não ultrapasse o proposto pelo então presidente Costa e Silva. Contraria os mais conceituados estudiosos da época e alega que o AI-5 foi produto daquela cúpula. – “Não tinha decisão”. Afirmo então que Elio Gaspari e Zuenir Ventura atribuem uma função meramente simbólica à reunião, ou uma tentativa frustrada de Costa e Silva de buscar resistência à promulgação. –“Nunca li Elio Gaspari. E morro sem ler. Zuenir Ventura foi aliciado por ele”.

A palavra “repugnância” é repetida algumas vezes quando questionado sobre outros participantes que, diferentemente dele, se disseram arrependidos alguns anos depois. Tece críticas vorazes ao que ele alega ser falta de caráter. O coronel faz pausa neste momento e se comove. Talvez repugnando a postura dos colegas. Talvez se regojizando por não ter feito o mesmo.

Embora fosse parte importante da pauta, a tortura é mencionada pela primeira vez por ele. Aproveito imediatamente: - “A tortura ocorreu, Jarbas? Ocorreu!” Estava ali dito com todas as letras. Naquele momento soube o peso da entrevista. Poucas pessoas vivas podem responder categoricamente tal pergunta. A tortura não se questiona. Assumi-la foi revelador. Conta então do primeiro caso de tortura que teve ciência e diz que a prática era mantida por setores que agiam sem o consentimento do governo. Afirma que seu irmão e sua esposa foram vítimas. Mais uma vez culpa a pressão militar como fator decisivo no exercício da tortura. Encerra o assunto questionando qual nação soberana não tenha se utilizado da tortura para averiguar fatos que julgue relevante. Exaltado, sugere que se este jornalista que vos escreve estivesse sob tortura, falaria o que fosse. Prefiro pensar que não, assim como prefiro não ter conhecido os calabouços do DOI - CODI. A partir daí, Jarbas Passarinho se nega a responder qualquer outra pergunta sobre o tema.

No final da conversa o coronel gagueja. Perguntado sobre o legado que poderia deixar para esta geração que cultua 68, diz que somente através da educação se faz revolução. Por alguns segundos, soou como discurso de líder estudantil. Daqueles contra governos militares. Ainda deu tempo de criticar a juventude atual, sem intelecto e incapaz de discussões fervorosas. Certamente a resposta mais franca. O gaguejo confirma.

Ele não escuta Caetano Veloso. Prefere Milton Nascimento e Rachmaninoff.


Texto e entrevista por Diego Ponce de Leon

"Cucurrucucú Paloma"


"Cucurrucucú Paloma"


Caetano nasceu cego. Não conheceu o doce vermelho do morango. Não experimentou o vermelho ardente do fogo. O verde das folhas. A natureza verde. O céu azulado. O azul do amor. A vida era preto e branco. Como nos filmes de outrora. Como Glória no "Crepúsculo". Como a escuridão profanada nos tristes lábios que disseram: "Rosebud" em Cidadão Kane. Não havia cores. Nem o colorido de Frida Kahlo coloria seus olhos fechados. Questionava a vida. Sua função, suas virtudes. E a achava inútil. Nunca sorriu! Nem riu. A boca cerrada e a tristeza estampada eram fiéis companhias. Nunca sorriu...

Escutava Dolores Duran e compartilhava de sua angústia. Sentia Maysa e compartilhava de suas lágrimas. Ouvia Elizete e compartilhava da "Canção do Amor Demais". Lia com os dedos Augusto dos Anjos e compartilhava de sua repulsa e hipocondria. Era digno de pena. Misericórdia pelo rapaz cego!

Na inócua juventude conheceu Paloma. Doce Paloma. De cachos negros, pele dourada, olhos mel e lábios rosa. Cores vibrantes aos olhos inquietos de Caetano. Enamorou-se. Perdeu-se no amor. Encontrou-se na paixão. Mas seguia triste e calado. Faltava-lhe visão para declarar o contido sentimento. Mal sabia que doce Paloma nutria sentimento igual. Que aguardava ansiosamente mostrar-lhe o mundo, os filmes coloridos e as músicas de Gil. Existia algo especial na vida turva e desfocada daquele rapaz que nunca sorriu. Ela, com visão nítida e transparente, tampouco tivera razão para sorrir. Choravam, juntos, a ausência do outro. Ele desejando vê-la. Ela preferindo não ter visto.

A dor insuportável do sentimento que o coração não lhe continha, o fez atingir o inimaginável. Na presença de Paloma, numa tarde ensolarada, de um dia vívido em cores, declara-se. Paloma, repleta e sufocada de uma sensação de alívio e libertação tão intensos quanto a paixão que impulsionava seu coração à uma batida frenética, perdeu-se nas palavras e rendeu-se à uma falta de ar e a um choro descomunal. Pena que ele não pode ver doce Paloma ofegante, mas sorrindo.

Inibido pela respiração vacilante da amada e pelas lágrimas que imaginava escorrer, embebedou-se da certeza inabalável que seu amor jamais fosse recíproco. Humilhado pela exposição explícita do âmago da dor, levantou-se e correu em direção ao quarto. Não sem antes cair, derrubar-se e perder os passos. Na gaveta, empunhou-se da tesoura, que já alimentara sua imaginação anteriormente, mas que não cumprira seu papel. Deferiu um único golpe contra o próprio corpo. Não viu o sangue vermelho. Nunca sorriu!

Houve apenas tempo para que Paloma, ainda calada, lhe desse um único beijo. Como o beijo no asfalto de Nelson Rodrigues. Como uma despedida. Os lábios rosa de Paloma na sua boca. Com a mesma boca, Caetano proferiu suas últimas palavras: "Te vi, te vi, te vi. Eu não buscava à ninguém e te vi." No rosto de Caetano, um sorriso eternamente estampado. Imortalizado.


“O resto é o silêncio.”


Texto de Diego Ponce de Leon

quinta-feira, 29 de maio de 2008

"1968 - O Ano Que Não Terminou", de Zuenir Ventura


1968 – o ano que mal começou

Passei o reveillon daquele ano em Paris. No que me compete, não poderia afirmar que na capital francesa tenha ocorrido festa similar à celebração do ano que surgia, como a que se deu na casa de Heloisa Buarque de Holanda. Zuenir Ventura abre “1968 – O ano que não terminou” (Planeta, 2008) relatando os casos e acasos daquela memorável noite, que de alguma forma, como pretende o autor, já estabelecia o tom dos acontecimentos que estava por suceder e varrer o país de uma forma avassaladora.

A história me elegeu testemunha quando permitiu que eu estivesse a caminho do Cinematéque, onde pretendia assistir qualquer filme, embora já soubesse que possivelmente Godard estaria em cartaz, no dia mais importante de sua trajetória, quando sucumbiu e fechou as portas. Ali se anunciara tempos antes, que “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, faria parte uma mostra de filmes latinos a ser montada. Eu soube do culto ao filme de Glauber no Brasil e aguardava ansiosamente por sua estréia. Não demorou para que eu fosse informado pelos dispersos estudantes que circulavam nas proximidades, do absurdo que significava o afastamento de Langlois. Quando percebi, já era militante ativo de uma manifestação que ocorria em frente ao cinema. Nesse instante, ajudei a pichar “É proibido proibir”.

Foi o sociólogo e intelectual Fernando Henrique Cardoso, por acaso meu professor na Universidade de Nanterre, que me proporcionou um panorama crítico e detalhado dos eventos que abalavam a sociedade brasileira. De tais eventos, testemunha eu não fora, mas Zuenir me fez observador atento.

Leandro Konder, filósofo da época e personagem na obra de Zuenir, foi quem melhor definiu as atribuições do livro quando afirma: “1968 – O ano que não terminou presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática brasileira.” Num país de memória escassa e que ao desconhecer o passado, se condena a repeti-lo, Zuenir Ventura esmiúça o passado e nos condena a engoli-lo. Vítima da repressão que se instalava, Zuenir se mostra imparcial e retrata fielmente os ocorridos. Mas recorre, sem pudor e com maestria, à ironia clara, que seria referência em seus textos futuros. Célebres ou inusitados, os momentos descritos ganham formas impecavelmente vívidas e vorazes, onde os coadjuvantes são protagonistas e os detalhes, texto principal.

A morte de Edson Luís de Lima Souto, no Rio, nem se compara à agitação ocasionada em virtude de sua missa de sétimo dia. Morto irrisoriamente durante tumulto causado pelo descontentamento do aumento nos preços do restaurante estudantil Calabouço, descobre-se que foi sua missa, não sua morte e muito menos ainda sua militância (inexistente), que o fez mártir da juventude. Diante da Candelária, eu certamente teria repetido: “Inesquecível, padres.”

A Passeata dos Cem Mil é, literalmente, um capítulo à parte. Podemos transitar dentre a multidão e por alguns instantes o livro em nossas mãos quase se torna mais um cartaz dentre tantos. A rua ao lado poderia ser a Rio Branco ou a Presidente Vargas. O Teatro Municipal se ergue majestosamente nos tropeços da imaginação. Escutamos com uma clareza estarrecedora as palavras dos vários discursos de Vladimir Palmeira. Zuenir sabe a medida exata da longitude de seu texto. Pouco mais, era capaz de me levantar e esbravejar meus ideais. Ao término do capítulo, eu disse em voz alta, como se diante de uma platéia: “Foi o espetáculo mais impressionante que eu vi na minha vida”.

Por vezes, a sensação é repugnante. O estômago embrulha. Como assistir um filme de David Linch. Indigerível. A veracidade cinematográfica da assembléia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que culminou com a vingança abusiva, imoral e subversiva no campo do Botafogo é incômoda. A sexta-feira sangrenta pungiu minha dignidade e manchou de vermelho minha impotência. Naquele dia, eu já teria atestado: “Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?”. A única cor rouge que pairava minhas afixações, era a representada por Daniel Coehn.

Caetano, Gil e Geraldo Vandré protagonizavam o ménage à trois mais interessante do cenário musical relevante. Com direito a amante de luxo: Chico Buarque. O painel musical e as transformações culturais oriundas desse, trazem ritmo e uma dinâmica melodiosa ao livro. As letras, as peças de teatro, o idealismo artístico, a nudez de Marília Pêra, a boca suja de Marieta Severo, o carcará de Bethânia, a alegria de Veloso, o domingo de Gil, as carolas de Chico e por fim, as flores de Vandré, expunham o liberalismo e a evolução do senso comum. Talvez maior herança daquele ano. Empurraram os estudantes e deram voz às suas reivindicações.

Estudantes! Caros estudantes. Invejo-os. Não que as passeatas no Quartier Latin fossem despretensiosas. Mas a causa não era minha. Teria trocado a ocupação da Sorbonne, pela da UNB. Preferia o gás lacrimogêneo. Os papéis picados do centro. As reuniões clandestinas. As sessões extraordinárias de “Roda Viva”. Justo, serem vocês o fio condutor, a linha de argumentação de Zuenir Ventura. Mas admito, no que tange o congresso da UNE em Ibiúna, ali, durante a organização eu teria sido Caetano Veloso e berraria aos quatro cantos: “ Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada!”. A perspectiva presente seria melhor se sequer existisse qualquer movimento estudantil. Deu lugar ao egoísmo acadêmico.

Jogando às favas os escrúpulos da consciência, o AI-5 foi instituído. Minuciosamente detalhado pelo autor, acompanha-se os passos de Costa e Silva no fatídico 13 de Dezembro. Pedro Aleixo tem seu legado quase heróico documentado e Jarbas Passarinho aproveita para não posar de madalena arrependida. O cenário e todos seus elementos, a iluminação, os figurinos, o elenco, a sonoplastia, o contra-regra, o preço do ingresso, os improvisos e a transparência cênica, são apresentados de forma tão assustadoramente claros, que a previsibilidade dos atos finais antes que as cortinas se fechem é soberana. Cai o pano. Quem não caiu, foi de Gaulle. Pelo menos não vi.

Quisera eu ter participado do reveillon de Helô. E lá, jamais teria dito que aquela libação significava “o fim de uma era, e não, infelizmente, começo de uma nova”. Zuenir Ventura prova o contrário. Que o diga a líder estudantil da AP, que gritava “Quero trepar! Quero Trepar!”. Dizem que ela, virgem na festa, já perdeu a conta. A fonte é segura. Essa transformação deu tempo de eu ser testemunho.

Texto por Diego Ponce de Leon

terça-feira, 13 de maio de 2008

Perdendo "la ternura"




Uma das mais tradicionais comunidades a co-existir entre nós, acordou abalada e profundamente sentida com uma notícia inesperada, cujas conseqüências ainda não tomaram as devidas proporções. Recebida de maneira festiva por uns e de forma fúnebre por outros, a pacata e amigável comunidade vê-se dividida e ansiosa pelos próximos acontecimentos. Unânime é certamente a expectativa de todos perante o anunciado discurso a ser lido, pelo líder comunitário, claramente devastado, Gargamel Guevara.
O afastamento de Fidel Castro do governo cubano trouxe uma sensação de perda e derrota talvez desconhecidas do governante de botas vermelhas. Orgulhoso por manter vivo e em perfeita harmonia, o único povoado absolutamente comunista em todo o mundo, Gargamel se enfraqueceu com a queda de uma referência ideológica como Fidel. Admirava-o em demasia e utilizava-se de seus ensinamentos para manter intacto o sentimento socialista entre os smurfs. Num já longínquo passado, fora assim que tornou todos iguais em Smurflândia. Ao estipular que cada cidadão azul se vestisse da mesma forma, trabalhasse exclusivamente em equipe e não ostentasse bens materiais, atingiu gradativamente níveis de excelência comunista até então considerados impossíveis, talvez até mesmo por Lênin ou Marx.
Gargamel, que adquiriu o sobrenome Guevara recentemente, para honrar a morte e os ideais do companheiro de outrora, recolheu-se indefinidamente, e esteve em público em duas ocasiões somente. Para anunciar o discurso que ditará as novas diretrizes da comunidade, onde deverá exprimir seu pesar pela queda de Fidel, e em rápida visita à ilha cubana , onde esteve com Raúl Castro.
Temido e rejeitado por vários, Gargamel perde forças na manutenção de seus objetivos. Se não fosse a idade avançada de 137 anos que já o aflige, a queda de Fidel traz perspectivas indesejáveis.

Num futuro breve, os smurfs talvez já usem calça jeans.


Texto por Diego Ponce de Leon

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Sou Brasileiro

Sou brasileiro. Tenho vergonha do meu país. Assisto perplexo as notícias que tangem a inevitável corrupção praticada por nossos eleitos. Políticos empossados com nossa benção protagonizam o mais assustador filme de terror já produzido. Digno de Bela Lugosi. Maior frustração é saber que esta película não atingirá um final feliz. Não há “mocinhos” na história e nosso herói é o principal bandido.
Servidores públicos atuam magistralmente em seus papéis que consistem na ação de omissão. Contribuem silenciosos e imunes de culpa, para que o grande desfecho trágico atinja seu ápice. Será o triunfo! Condecorações deveriam ser distribuídas para estes ineptos coadjuvantes. Políticos são peças fundamentais para esse enredo e seriam descritos por Nelson Rodrigues como “cretinos fundamentais” nesse roteiro. Como os figurantes malandros de “Cidade de Deus” e os personagens hipócritas de Fellini.
Nós, o povo, assistimos calados nossa própria desgraça, regados da ilusão de não sermos parte daquilo escancarado na tela diante de nossos olhos. Pagamos o ingresso. Destarte, propiciamos a existência deste entretenimento simplório, que de forma alguma jaz efêmero. Simplório somos e esta ignorância irrisória e característica, efêmera jamais fora. No final do filme, levantar-nos-emos e sairemos da sala de projeção. Munidos da vergonha daquela banalidade explícita, nada comentaremos. Afinal, qual o sentido de discutirmos algo tão natural e cotidiano? Alguém mais corajoso poderá comentar: “triste, não?!”. Será rapidamente tomado pela decepção ao receber como réplica: “faz parte” ou “é a vida, meu filho”.
Mas todos nós esperaremos ansiosos pela seqüência e mais uma vez lotaremos a sala de projeção. Enquanto a segunda parte não chega, continuaremos a acordar às 5 da manhã, iremos abandonar nossas famílias e partir em busca do soldo nosso de cada dia que garante nossa patética existência. Afinal, não recebemos auxílios pecuniários, pelos menos não em forma de esmola. Diferentemente daqueles do filme, patrocinados por nosso suor para continuarem atuando. Ora! Eles merecem! São pessoas de valor, cultos, que sacrificaram a vida inteira para escrever o nosso destino. “Até aí, morreu Neves...”.
Viva os filmes de Frank Capra, desprovidos de sensações intelectualizadas e conteúdo pragmático, mas protagonizados por pessoas comuns, como nós. Acima de tudo, repletos de finais felizes.

“Quem me dera ao menos vez (...) acreditar que o mundo é perfeito, que todas as pessoas são felizes.”

Sou brasileiro e já desisti há muito tempo.

Texto de Diego Ponce de Leon

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Welkomm!!!!

Faça das minhas palavras, as suas. Seja bem-vindo. O prazer é todo seu!!