quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Quando Eu Estou Aqui


Quando eu estou aqui...

Conservatória é, certamente, das mais pitorescas cidades no interior do estado do Rio de Janeiro. As razões são inúmeras. O título de “Capital Nacional da Seresta” é uma delas.

Cada noite, sob o luar, seresteiros percorrem as ruas enladrilhadas cantando e declamando o próprio amor. As namoradeiras se espreitam no descanso das janelas para escutar as poesias e canções. Cenas quase barrocas. Quisera poder moldá-las.

“Seu” Fernandes, 75 anos, é seresteiro querido na cidade. Dedicou os últimos 20 anos na manutenção do Museu da Seresta, que guarda um acervo musical precioso. “A memória de José Borges deve ser honrada”, diz Fernandes. Ele se refere ao primeiro cancioneiro a se instalar na cidade. No final da década de 50, José Borges e seu irmão Jubert (que ainda está vivo, aos 87 anos) se sentavam na praça e cantavam até o amanhecer. As pessoas se aproximavam, cantavam juntas. Aos poucos outras vozes se fizeram ouvidas. O poeta e seus versos. O pintor com suas telas. O violeiro e suas cordas. Nascia a tradição cultural da cidade.

Enquanto “Seu” Fernandes relata os “causos” da pequena cidade, Dona Lúcia olha-o atentamente. Interrompe-o diversas vezes. “O senhor me desculpe!”. E passa ela a contar histórias inacreditáveis ocorridas ali. Não sem antes fazer o sinal da cruz. Passava o cortejo que velava o corpo de Dona Sarita, esposa do médico da cidade. As portas do comércio se fechavam conforme os amigos e familiares de Saritinha, como era carinhosamente chamada, seguiam rumo ao cemitério. Entoavam cantigas fúnebres. “Pessoa boa. Alma pura”, lamentou Dona Lúcia. Mas retomou logo a narrativa sobre o rico folclore local.

Lendas de uma fantasia deliciosa. Estórias (uso a palavra em respeito a João Ribeiro) para comer. Um universo de escravos e senzalas. Curandeiros e milagres. Seresteiros e amores eternos. Gilberto Freyre ficaria orgulhoso. Caio Prado Jr. torceria o nariz. Pena que Dona Lúcia é logo censurada pela filha, aflita para seguir o rumo de casa e receosa pela chuva que ensaiava uma tempestade daquelas. A aula de música com Maria Olímpia, esposa de “Seu” Fernandes tinha acabado. Agarrou a mão da mãe e seguiram as duas, fugindo dos pingos que já caiam.

A música “Ontem ao Luar”, de Catulo da Paixão, tocava num rádio antigo que transmitia a programação da única estação da cidade. O aparelho arcaico parecia padecer junto à canção. O cantor soava melancólico e podia-se quase imaginar sua expressão. “Quem está cantando sou eu”, revela “Seu" Fernandes. Com o olhar emocionado me entrega a cópia de seu mais recente livro, “Jardim dos Buquês”. Lê-se nas primeiras páginas: “Em Conservatória, as serenatas e serestas revivem em nossos corações, um tempo que não existe mais.”.

No pacato vilarejo, as crianças brincam nas ruas, os namorados compram algodão doce na praça, as moças puxam a barra da saia e os bilhetinhos de amor adentram as frestas das sacadas floridas. O sino da igreja convoca todos para a missa. E eles vão cantando. Desde a porta de casa.


Adendos:

Nos fins de semana, seresteiros locais e vindos de cidades próximas atraem os visitantes e a população local com as andanças pela cidade.

Em Conservatória, todas as casas recebem nomes de canções seresteiras. Estava hospedado na “Lábios que Beijei”, bem de frente à “Emoções”. Sugestivo para uma bela crônica.

Em tempo. Qualquer morador faz questão de diferenciar a seresta da serenata. “A seresta ocorre dentro do recinto. A serenata é sempre nas ruas. Mas ambas falam de amor”.

O nome da cidade, diferente do que a maioria imagina, não tem qualquer relação com a alma musical do local. Antiga área dos indíos Ariris, Portugal, ainda na época do império, instituiu ali um cartório para registro dos indígenas, que em terras portuguesas, recebe o nome de conservatório. Daí o nome.

Abraços para Gi e Cris. Companheiras de divagações eloquentes (sem trema!) e de risadas contextuais.


Texto de Diego Ponce de Leon