sábado, 12 de setembro de 2009

Carta Para Meu Filho

Querido filho,

por várias vezes pensei que não estaria aqui. O conforto do silêncio me permite te escrever estas palavras. Mal recordo a última vez que desfrutamos desta tranqüilidade. Sua mãe adormeceu no meu colo e eu tento equilibrar a caneta e o papel em seu leito. Ela está exausta. Os dias têm sido difíceis. Sua enfermidade nos consume.

Regojizo-me por saber que não terá qualquer memória deste momento. Sua tenra idade não permitirá que recorde destes olhos cansados, do choro contido de sua mãe. Nem mesmo do calor de nossas mãos juntas.

Seu rosto está iluminado. Como na primeira vez que eu o vi. A paz profunda que você parece sentir abranda o aperto do meu peito. Nada mais conta. Nada me cansa. Tudo por você. Todas as noites mal dormidas, os dias exauridos, cada vinda à Emergência, a árdua busca por esperança, a alma esgotada. Cada texto que escrevi por distração ou fuga. Cada oração que sua mãe fez por fé.

Quando você crescer vai conhecer um pensador chamado Confúcio e deverá prestar atenção às suas palavras. Ele nos ensina que as grandes jornadas são iniciadas com pequenos passos. E foram tantos, meu filho. Incontáveis passos até este hospital. Até a cirurgia. Por vezes sua valente mãe nos carregou, quando ela mesma mal podia andar.

Penso em todos os caminhos percorridos por tantas partes antes que eu pudesse estar aqui. Nas pessoas que trilharam as estradas comigo de mãos dadas. Lembro da Alice em Amsterdã e o dia em que ela perdeu seu filho. A dor de uma perda que eu talvez não conheça em toda a minha vida. Lembro do olhar do marido, Antônio, companheiro de luta, desmoronando em desespero com um olhar de desistência que até hoje me angustia. Lembro da senhorinha francesa, dona de uma livraria empoeirada, que me deu abrigo e esticou um cobertor no chão frio entre as estantes. Devo-lhe muito. Assim como a cada um que me jogou uma moeda enquanto cantava minha sobrevivência num cemitério coberto por neve. Recordo feliz dos gêmeos mexicanos que nada poderiam me oferecer, senão a alegria de viver. As amigas italianas e os cânticos no meio da madrugada para me lembrarem que eu não estava sozinho. Da menina de Budapeste que me levou café na beira da calçada. Daquelas senhoras búlgaras que choraram comigo à voz de Edith Piaf e me derem a passagem para casa. Lembro do casal Jorge e Fernando e tudo que me ensinaram sem precisarem dizer uma palavra. Seus avós. Não há palavra que os faça justiça!

Até o dia que caminhei até sua mãe e soube que caminharíamos juntos onde quer que fôssemos. Queríamos uma família. Planejamos você, pensamos em você e sonhamos com você. Aí você nasceu. Então paramos de caminhar e naquele dia, começamos a flutuar.

Algum dia vou te contar, pessoalmente, uma história que nunca esqueci. Fala sobre um rapaz perturbado, que embora recebesse carinho e devoção de sua família, nunca se encontrou. Mesmo querido e apoiado pelos amigos, buscou refúgio para suas dificuldades no vício. E se consumiu. Consumiu a todos. Carregou a família à miséria e à ruína. O câncer do alcoolismo não o perdoou. Antes de morrer, rezou para poder partir em paz. Pediu aos céus que sua medula estivesse intacta e que pudesse salvar uma jovem vida que se apagaria em breve.

Olho para você e não sei de que forma poderei agradecer o presente que seu tio te deu. Você não lembrará da voz dele, nem do jeito engraçado, nem do sorriso. Mas pode ter certeza, meu filho, tudo que você aprender sobre família terá sido com meu irmão.

Preciso ir. Você parece estar abrindo os olhos. Sua mãe te trará carinho. Ela já está despertando. Estarei descansando aqui do lado. Não solte minha mão. Te amo.

Seu Pai,
Diego.


Obs: O texto é uma peça de enredo ficcional com elementos biográficos.


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

ALL THAT JAZZ




“All That Jazz”

Bessie Smith figura entre as principais expoentes do jazz americano. Unanimidade entre as décadas dos anos 20 e 30, a cantora teve sua morte precocemente decretada. Vítima de um acidente, Bessie foi rejeitada no hospital mais próximo por ser negra. A delonga na busca por assistência médica foi determinante para seu falecimento. Inquestionável a colaboração de Dave Brubeck para o gênero. Dave foi um dos cinco músicos de jazz a estampar a capa da revista Time. Estranho no ninho, Dave era branco. A canônica Ella Fitzgerald prestigiou a música brasileira e elevou-a para estágios superiores ao cantar o repertório de Tom Jobim em um dos seus mais aclamados discos. Mahalia Jackson quebrou paradigmas e produziu fusões do jazz com o soul, R&B e blues. Foi uma das primeiras negras a cantar no Carnegie Hall, o palco mais prestigioso de Nova York. O diabólico Thelonious Monk foi diagnosticado como doente mental. Leslie Gourse, principal biógrafo do pianista, atesta que o tratamento negligenciado não ofereceu chances de recuperação. Um dos mais respeitados historiadores britânicos do século passado era apaixonado por jazz. Ao abordar criticamente o movimento social por trás do gênero, com todos os seus protagonistas e relações, escondeu-se sob o pseudônimo de Frances Newton. O trabalho de cronista de jazz não poderia se confundir com a pesquisa acadêmica. O livro foi publicado em 1961 sem causar impacto. A segunda edição (e as demais) de “História Social do Jazz” (Paz e Terra, 2008) trouxe o real nome do autor: Eric Hobsbawm.


Em 1808 mais de meio milhão de escravos negros teriam deixado a pátria para ingressar como força de trabalho na expansão e crescimento das cidades americanas. As colônias e povoamentos negros recorreram às tradições africanas na manutenção dos mitos e ritos dos povos desfragmentados. A música possuiu papel fundamental na motivação e na realização dos afazeres e trabalhos braçais a que eram impostos. O Place Congo, em Nova Orleans, tornou-se palco de festivais de dança e percussão africana.

Aos poucos, os artefatos rudimentares trazidos pelos negros africanos foram substituídos por instrumentos europeus. Músicos negros passaram a tocar violino, piano, instrumentos de corda e sopro. A influência européia sobre a música afro-americana deu origem ao jazz.

O movimento surgiu no início do século passado e produziu diversas derivações. Ragtime, Dixieland, Swing, Bebop, Hardbop, Cool Jazz e Free Jazz foram algumas dessas ramificações. Igualmente importantes, as fusões jazzísticas causaram relevante contribuição no decorrer dos anos. Os encontros do jazz com o rock, blues e salsa foram celebrados em diferentes épocas. Mais modernos, o Nu Jazz e o Jazz Eletrônico clamam por novas gerações de apreciadores.


Eric Hobsbawm nos conduz sabiamente numa jornada que passeia pelos principais momentos da história do jazz. Obedecendo a uma ordem cronológica, o livro divide-se em 4 partes: 1) pré-história, de 1900 a 1917, solidificação da música negra nos Estados Unidos, 2) antigo, de 1917 a 1929, evolução musical do jazz, 3) médio, de 1929 a 1941, conquista de audiência européia e início da popularização americana, e 4) moderno, a partir de 1941, abrangência universal. Hobsbawn transcende a própria paixão pelo objeto de escrita, para possibilitar um texto crítico e adverso.

A genialidade de Hobsbawn permeia-se na maestria em tratar do jazz como matéria de pesquisa social. A constância racial na música incendiária dos becos negros e dos bairros étnicos americanos. A edificação de um estilo musical como expressão urbana de uma sociedade fundada em moralismos e princípios falidos. A música como elemento de resistência. As mutações no consumo de brancos e pretos. O jazz como entretenimento cultural de trabalhadores pobres. A história do movimento construída em paralelo com a sociedade americana contemporânea, seus preceitos e dicotomias.

A delicadeza e a lucidez de Hobsbawn ao abordar o embate vitalício entre os músicos de jazz e a indústria fonográfica são comoventes, e propiciam uma reflexão extrínseca às páginas do livro. Compreender o movimento é fundamental para separarmo-lo de causas descontextualizadas, meramente comerciais. As inconstâncias dos festivais de jazz atuais. A obviedade do repertório de Diana Krall. As canções de Baden Powell na voz de Jane Monheit. Norah Jones com standards tecnicamente impecáveis. Esperanza Spalging e Leny Andrade são raridades. Certamente, Hobsbawn as escuta.

O estilo, o ritmo, a cadência, a sonoridade e as referências do livro tornam a leitura deliciosa. Como a voz de Sarah Vaughn ou o sax de Charlie Parker. Sabor de jazz. Talvez seja este o maior trunfo de Eric Hobsbawn.

segunda-feira, 30 de março de 2009

RECORTE

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos. Está lá o corpo estendido no chão. O que me importa é não estar vencido. Não está chegando a hora, nem é hora de partir. Mas de reconhecer a queda e não desanimar. Deixar toda dor interna morrer. Levantar a cabeça e dar a volta por cima. Arrependimentos eu tive alguns, mas tão poucos, indignos de menção.

Vida louca. O amor veio e me levou com ele. E foi assim, como ver o mar, a primeira vez. Mas acabamos descobrindo que podemos vê-lo de tantas formas melhores. E assim o fiz. Sonho mesmo, a charada sincopada que ninguém da roda decifra. É minha lei, é minha questão. Sonhar mais um sonho impossível, vencer o inimigo invencível.

A partir de hoje, seu olho me olha, mas não me pode alcançar. Quem não me conhece não pode mais ver pra crer. Quem jamais me esquece não poderá me reconhecer. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Então vamos começar colocando um ponto final. Finalmente viver sem ter medo de ser feliz.


Palavras são palavras e a gente nem percebe. Mas cada um tem seu jeito próprio de se defender. Basta de clamar inocência. Consegui exatamente o que eu queria. E não há nada que me detenha. Quando fui, quando não fui, tudo isso eu sou. Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. Deixar o meu amor crescer e ser muito tranqüilo. Vai ser, vencer, brilhar, acontecer!

Posso me orgulhar e tenho a consciência que eu tenho meu lugar. Eu sou o cara.

DIEGO PONCE DE LEON

Obs: A inspiração do recorte musical e as referências literárias são uma homenagem ao amigo de fé e irmão camarada, Vinny Werneck.

sábado, 21 de março de 2009

COTIDIANO

COTIDIANO

Todo dia nós fazemos tudo igual e postamos várias horas da manhã. A necessidade da atual geração é estar sempre exposta, numa espécie de competição por popularidade. A entrega aos meios virtuais permite a falsa idéia de sermos quistos pelos demais. Buscamos o maior número de amigos ou seguidores. Construímos blogs e gastamos vastas horas do nosso cotidiano para a alimentação dos personagens que interpretamos na tela.

Nunca foi tão fácil inflarmos nosso ego social e nos apresentarmos como quer que seja. Cabe à nossa seletiva escolha de palavras nas descrições dos perfis afora, para atingirmos os leitores exatamente como esperado. O apelo visual das ferramentas e utensílios disponíveis, como fotos e vídeos, reforça a construção desta personalidade a ser assimilada pelo nosso círculo social.

Stanislavski discorre em seu livro “A Construção do Personagem” sobre os diversos artifícios que o ator deve recorrer para a formulação perfeita do papel a ser interpretado. Mal sabia que em tempos de redes sem-fio e da geração SMS, suas técnicas seriam naturalmente aplicadas por qualquer um que intente ingressar no amplo mundo dos internautas. Arriscar posição contrária pode ser visto como suicídio social.


Mesmo diante das adversidades recorrentes, sejam quais forem e independente da intensidade, recusamos todas as atitudes analógicas. O bullying ocorre via mensagens de texto entre celulares, as fofocas recheiam as páginas pessoais, vidas são destruídas por vídeos caseiros e vizinhos tornam-se célebres no You Tube. Os nerds se passam por descolados. As gordinhas estão em forma. O aluno rebelde tem página para suas especulações desprovidas de argumento e ainda sim, registra números impressionantes de comentários em cada texto. Namoros iniciam via email e terminam pelo MSN. Mallu Magalhães, coitada, acredita que as visitas no My Space façam dela cantora.


A tragédia maior recai na máscara que vestimos. Distanciamo-nos gradativamente de nossa sombra (viva Jung!) e a cada scrap estamos cada vez mais longe de quem verdadeiramente somos. Fernando Pessoa nos alertou anos atrás, que determinada hora, a máscara estará grudada ao nosso rosto (persona). Conseguimos nos convencer de tudo que adoraríamos ser e passamos a viver em locais públicos. Os danos serão irreparáveis. Pouco importa. A liberdade de escolha diante de um número infinito de personagens é apelativa e estamos seduzidos. Gil cantou sobre a internet quando esta dava os primeiros passos e soava musical. As trilhas são inúmeras. E estão todas ilegalmente disponíveis no E-mule e no Limewire aguardando download.


Irônico pensar na vastidão do mundo da internet e no que poderia nos propiciar, quando nos submetemos e passamos a teclar cada letra passivamente. Escravos de nossos perfis, depoimentos e buddypokes.


Tomara que as músicas continuem sendo baixadas, os blogs escritos e os perfis criados. Mas que os internautas se tornem mais conscientes e possam desempenhar seus papéis com a verdade que lhes condiz. Bons tempos aqueles em que o amor era o ridículo da vida. O amor é virtual. Assim como o sexo, as amizades e tudo aquilo que você não é.


Palavras pouco românticas para os orkuteiros e twitteiros de plantão, escritos por um blogueiro, membro da mesma rede que une todos nós. Sou lido e visto. E você que não é? Deve estar morto.


Texto por DIEGO PONCE DE LEON