quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sou Eu Mesmo



Sou eu mesmo

Tenho receio de escrever textos que falem sobre mim. A escrita, libertária como é, pode revelar mais do que eu gostaria. Escrevemos, antes de tudo, para nós mesmos, e, por vezes, esquecemos (ou fingimos esquecer) que outros leitores irão surgir. Assim, somos tomados por um ilusório conforto de criação. As palavras não são medidas e as frases fluem com uma naturalidade assustadora.

Sou “karioka” de nascença e ideologia. Tomei café em Paris, chás em Londres e outros “chás” em Amsterdam. Comi alfajores no Uruguai, chucrute na Alemanha e aperitivos indecifráveis na Polônia. Experimentei (entre outras coisas) a noite belga, o tango argentino e o jazz de Nova York. Nada, absolutamente nada, se compara à cerveja com torresmo que tomo na Lapa com um desconhecido qualquer.

Sou candango por imigração. E admito, constrangido, que o céu de Brasília é único. Ainda me deleito com os rosas e alaranjados que surgem no final da tarde e vistos de qualquer ponto da cidade, protagonizam parte do dia. Adoro passar pelo parque da cidade de Eduardo e Mônica, pelos campus da UNB de Honestino Guimarães e pelas quadras que serviram como abrigo para tantas Cássias e Zélias. Escutar o bandolim de Oswaldo Montenegro e Hamilton de Holanda. Como cachorro – quente na rua. Aceito e celebro a solidão dos eixos. E vibro com o calor humano do Festival de Cinema de Brasília.

Sou musical. Sou livre com a “alegria, alegria” de Caetano. Sou inexperiente diante das mulheres de Chico. Sou melhor com Elis. Sou o Rio de Janeiro com meu pandeiro na mão. Visito as favelas de Clementina, as classes médias de Nara Leão e a diplomacia de Vinícius. Visto-me da garra de Elza, carregos as armas de Jorge e como o carcará de Bethânia. Danço no Castelo das Pedras, na MelkWeg, no Studio 54 e no Clube do Choro.

Sou leitor. Ainda não li “Crime e Castigo” o suficiente para discuti-lo com propriedade. Não evoluí o suficiente para compreender Clarice, e nem estudei o bastante para me aliar a Sérgio Buarque de Holanda. Viajei com Amyr Klink, morri com Machado e ressuscitei com Vargas Llosa e todas as suas meninas más. Passei pelo inferno, purgatório e paraíso de Dante e experimentei os sete pecados capitais. Fui personagem de inúmeras “comédias da vida privada” e encaro “a vida como ela é”. Refiz diversas vezes o caminho de Santiago de Compostela e me afeiçoei pelos sertões de Euclides e pelas veredas de Guimarães.

Sou amante. Deitei-me com a Anita de Mário Donato. Participei da “pornopolítica” de Jabor. Encantei-me com a Lolita de Nabokov. Até o triângulo amoroso de “Política”, de Adam Thirlwell, eu vivi.

Sou militante. Conheço a história para não repeti-la. Esbravejei textos de Marcuse na passeata dos “cem mil”. Dei as mãos à Truffaut na Cinémathèque. Chorei pela morte de Edson Luis de Lima Souto. Fui à Auschwitz. Pausa. Éramos mais de 20 quando invadimos e tomamos posse de um apartamento em Amsterdam que deveria ser ocupado pelos amigos Antônio e Alícia. Antônio morreu. Quero percorrer os "diários de motocicleta". Aprendi a repugnar qualquer preconceito e enaltecer as diferenças. Critico o ordinário.

Sou amigo. Imperfeito. E ciente de ser quisto, não pelas imperfeições, mas apesar delas.

Sou eu mesmo, “a charada sincopada que ninguém da roda decifra”.

Muito prazer.

Texto por Diego Ponce de Leon

terça-feira, 6 de abril de 2010

Maria Gadú me salvou noite passada




“As coisas não andavam bem”. Kevin Johansen inicia uma de suas canções exatamente desta maneira. Farei o mesmo.


As coisas não andam bem. Mas não me importo. Outro dia tive minha vida salva pela Maria Gadu. Quem?! Aquela que não passa dos 25 anos e está com música na novela. Usa corte de cabelo arrepiado e faz a linha cantora revelação lésbica pós moderna. Não é a Céu. Céu é a melancólica. Se arrasta toda pra cantar. Nem a Roberta Sá. A que canta sambas, mas insiste em ser chamada de cantora de MPB. A Mallu Magalhães vocês já identificam. Adora homens barbudos e estrelas no rosto.
Eu não consigo lembrar o nome da música que faz parte da trilha sonora do folhetim, mas Gadú tem sido lembrada pelas versões inusitadas de “Ne Me Quittes Pas” e “Baba Baby”. A primeira um clássico do Jacques Brel imortalizado nestas terras tupiniquins na voz de Maysa e reinserida em nossos ouvidos graças a uma minissérie baseada no livro “Presença de Anita” de Mario Donato, de nome homônimo. A outra, um misto de saliva e inocência perdida despretensioso, que Gadú quase nos faz crer que leva a sério, vide a profundidade (trocadilho intencional) de seu canto. Se ainda não souber de quem se trata, o Google agradece a visita.


Pois eis que Gadú esteve na capital dias destes e se apresentou para uma pequena platéia de 300 pessoas. Eu entre elas. Fui para o show sem grandes esperanças. Ou sem grandes expectativas, para manter o texto lírico com uma gratuita referência a Charles Dickens (ando obcecado com a literatura inglesa). Duas horas antes eu estava trocando vocábulos de baixo escalão com outros motoristas intransigentes num engarrafamento que deixaria a Rio Branco e a Paulista orgulhosas, enquanto tentava explicar para minha desavisada mãe quem seria o ser que responde por Maria Gadú e que merecia minha atenção naquela noite. Tentativa frustrada. Segui para o show.


Os dias anteriores merecem alguma atenção, até para que eu possa justificar a primeira frase deste texto. “As coisas não andavam bem”. Já pensou se Tolstoi tivesse dado curso a Ana Karênina (Anna Karienina, na transliteração direta para o alfabeto latino) sem qualquer referência àquela primeira frase do romance (que versa sobre as famílias infelizes) que por si só é um pilar da literatura mundial?! Não faria sentido. Então, não pretendo importuná-los com todas as tragédias que se abateram e fazê-los chorar como se pudessem escutar Celine Dion ao fundo. Mas preciso que saibam que as coisas não andavam bem. Afinal, como teria sido salvo se não houvesse motivos para tal?! Nem sempre as coisas andam bem. Curso natural da vida. Joseph Campbell nos ensinou e aprendeu quem quis. Nem sempre as coisas seguirão satisfatoriamente Faz parte da jornada a descida. Sem ela, nada de subidas. E subir não faz mal à ninguém. Leiam Nietzsche.


O show transcorreu exatamente como eu imaginava. Bela voz. Belos dedos. Sapatos maiores do que eu imaginava (trocadilho intencional 2). Nenhuma presença de palco (ela acabou de começar). Timidez exarcebada (que a confere certo charme) e penteado parecido com o meu. Eu sempre imaginei que seria salvo por outra Maria. Talvez Maria Bethânia que me recitaria versos de Pessoa pelo resto da vida. Ou Maria da Conceição, que responde como Elza Soares, com suas lições de vida, fome e balacobaco aos 70 anos. Maria Rita quem sabe, já que não deu tempo da mãe vir ao meu resgate. Mas foi Maria Gadú quem me estendeu a mão. E a boca.


No final do show, fui cumprimentá-la. Elogiei-a com verdades e mentiras. Delicada, ela sorriu. Levantei-lhe o rosto que insiste em estar levemente inclinado para a direita e a beijei. Naquele momento, éramos eu e ela. E pude experimentar dos mesmos lábios que balbuciaram shimbalaiê minutos antes. Não sei porque o fiz. E ela não soube explicar porque o recebeu. Como no beijo do asfalto de Nelson, nos despedimos. E tenho certeza de que não voltaremos a nos ver.


Sei bem as razões pelas quais as coisas não andavam bem. Mas não posso e nem devo explicar de que forma Maria Gadú me salvou. Adoro não saber. Adoro as coisas não ditas. Aposto que vocês estão adorando a sensação de não saberem se o último parágrafo de fato aconteceu. Soa surreal, certamente. Improvável. Mas, seria impossível? Respondo apenas que fui salvo.

Agora começo a subir.


Texto por Diego Ponce de Leon

sábado, 12 de setembro de 2009

Carta Para Meu Filho

Querido filho,

por várias vezes pensei que não estaria aqui. O conforto do silêncio me permite te escrever estas palavras. Mal recordo a última vez que desfrutamos desta tranqüilidade. Sua mãe adormeceu no meu colo e eu tento equilibrar a caneta e o papel em seu leito. Ela está exausta. Os dias têm sido difíceis. Sua enfermidade nos consume.

Regojizo-me por saber que não terá qualquer memória deste momento. Sua tenra idade não permitirá que recorde destes olhos cansados, do choro contido de sua mãe. Nem mesmo do calor de nossas mãos juntas.

Seu rosto está iluminado. Como na primeira vez que eu o vi. A paz profunda que você parece sentir abranda o aperto do meu peito. Nada mais conta. Nada me cansa. Tudo por você. Todas as noites mal dormidas, os dias exauridos, cada vinda à Emergência, a árdua busca por esperança, a alma esgotada. Cada texto que escrevi por distração ou fuga. Cada oração que sua mãe fez por fé.

Quando você crescer vai conhecer um pensador chamado Confúcio e deverá prestar atenção às suas palavras. Ele nos ensina que as grandes jornadas são iniciadas com pequenos passos. E foram tantos, meu filho. Incontáveis passos até este hospital. Até a cirurgia. Por vezes sua valente mãe nos carregou, quando ela mesma mal podia andar.

Penso em todos os caminhos percorridos por tantas partes antes que eu pudesse estar aqui. Nas pessoas que trilharam as estradas comigo de mãos dadas. Lembro da Alice em Amsterdã e o dia em que ela perdeu seu filho. A dor de uma perda que eu talvez não conheça em toda a minha vida. Lembro do olhar do marido, Antônio, companheiro de luta, desmoronando em desespero com um olhar de desistência que até hoje me angustia. Lembro da senhorinha francesa, dona de uma livraria empoeirada, que me deu abrigo e esticou um cobertor no chão frio entre as estantes. Devo-lhe muito. Assim como a cada um que me jogou uma moeda enquanto cantava minha sobrevivência num cemitério coberto por neve. Recordo feliz dos gêmeos mexicanos que nada poderiam me oferecer, senão a alegria de viver. As amigas italianas e os cânticos no meio da madrugada para me lembrarem que eu não estava sozinho. Da menina de Budapeste que me levou café na beira da calçada. Daquelas senhoras búlgaras que choraram comigo à voz de Edith Piaf e me derem a passagem para casa. Lembro do casal Jorge e Fernando e tudo que me ensinaram sem precisarem dizer uma palavra. Seus avós. Não há palavra que os faça justiça!

Até o dia que caminhei até sua mãe e soube que caminharíamos juntos onde quer que fôssemos. Queríamos uma família. Planejamos você, pensamos em você e sonhamos com você. Aí você nasceu. Então paramos de caminhar e naquele dia, começamos a flutuar.

Algum dia vou te contar, pessoalmente, uma história que nunca esqueci. Fala sobre um rapaz perturbado, que embora recebesse carinho e devoção de sua família, nunca se encontrou. Mesmo querido e apoiado pelos amigos, buscou refúgio para suas dificuldades no vício. E se consumiu. Consumiu a todos. Carregou a família à miséria e à ruína. O câncer do alcoolismo não o perdoou. Antes de morrer, rezou para poder partir em paz. Pediu aos céus que sua medula estivesse intacta e que pudesse salvar uma jovem vida que se apagaria em breve.

Olho para você e não sei de que forma poderei agradecer o presente que seu tio te deu. Você não lembrará da voz dele, nem do jeito engraçado, nem do sorriso. Mas pode ter certeza, meu filho, tudo que você aprender sobre família terá sido com meu irmão.

Preciso ir. Você parece estar abrindo os olhos. Sua mãe te trará carinho. Ela já está despertando. Estarei descansando aqui do lado. Não solte minha mão. Te amo.

Seu Pai,
Diego.


Obs: O texto é uma peça de enredo ficcional com elementos biográficos.


sexta-feira, 4 de setembro de 2009

ALL THAT JAZZ




“All That Jazz”

Bessie Smith figura entre as principais expoentes do jazz americano. Unanimidade entre as décadas dos anos 20 e 30, a cantora teve sua morte precocemente decretada. Vítima de um acidente, Bessie foi rejeitada no hospital mais próximo por ser negra. A delonga na busca por assistência médica foi determinante para seu falecimento. Inquestionável a colaboração de Dave Brubeck para o gênero. Dave foi um dos cinco músicos de jazz a estampar a capa da revista Time. Estranho no ninho, Dave era branco. A canônica Ella Fitzgerald prestigiou a música brasileira e elevou-a para estágios superiores ao cantar o repertório de Tom Jobim em um dos seus mais aclamados discos. Mahalia Jackson quebrou paradigmas e produziu fusões do jazz com o soul, R&B e blues. Foi uma das primeiras negras a cantar no Carnegie Hall, o palco mais prestigioso de Nova York. O diabólico Thelonious Monk foi diagnosticado como doente mental. Leslie Gourse, principal biógrafo do pianista, atesta que o tratamento negligenciado não ofereceu chances de recuperação. Um dos mais respeitados historiadores britânicos do século passado era apaixonado por jazz. Ao abordar criticamente o movimento social por trás do gênero, com todos os seus protagonistas e relações, escondeu-se sob o pseudônimo de Frances Newton. O trabalho de cronista de jazz não poderia se confundir com a pesquisa acadêmica. O livro foi publicado em 1961 sem causar impacto. A segunda edição (e as demais) de “História Social do Jazz” (Paz e Terra, 2008) trouxe o real nome do autor: Eric Hobsbawm.


Em 1808 mais de meio milhão de escravos negros teriam deixado a pátria para ingressar como força de trabalho na expansão e crescimento das cidades americanas. As colônias e povoamentos negros recorreram às tradições africanas na manutenção dos mitos e ritos dos povos desfragmentados. A música possuiu papel fundamental na motivação e na realização dos afazeres e trabalhos braçais a que eram impostos. O Place Congo, em Nova Orleans, tornou-se palco de festivais de dança e percussão africana.

Aos poucos, os artefatos rudimentares trazidos pelos negros africanos foram substituídos por instrumentos europeus. Músicos negros passaram a tocar violino, piano, instrumentos de corda e sopro. A influência européia sobre a música afro-americana deu origem ao jazz.

O movimento surgiu no início do século passado e produziu diversas derivações. Ragtime, Dixieland, Swing, Bebop, Hardbop, Cool Jazz e Free Jazz foram algumas dessas ramificações. Igualmente importantes, as fusões jazzísticas causaram relevante contribuição no decorrer dos anos. Os encontros do jazz com o rock, blues e salsa foram celebrados em diferentes épocas. Mais modernos, o Nu Jazz e o Jazz Eletrônico clamam por novas gerações de apreciadores.


Eric Hobsbawm nos conduz sabiamente numa jornada que passeia pelos principais momentos da história do jazz. Obedecendo a uma ordem cronológica, o livro divide-se em 4 partes: 1) pré-história, de 1900 a 1917, solidificação da música negra nos Estados Unidos, 2) antigo, de 1917 a 1929, evolução musical do jazz, 3) médio, de 1929 a 1941, conquista de audiência européia e início da popularização americana, e 4) moderno, a partir de 1941, abrangência universal. Hobsbawn transcende a própria paixão pelo objeto de escrita, para possibilitar um texto crítico e adverso.

A genialidade de Hobsbawn permeia-se na maestria em tratar do jazz como matéria de pesquisa social. A constância racial na música incendiária dos becos negros e dos bairros étnicos americanos. A edificação de um estilo musical como expressão urbana de uma sociedade fundada em moralismos e princípios falidos. A música como elemento de resistência. As mutações no consumo de brancos e pretos. O jazz como entretenimento cultural de trabalhadores pobres. A história do movimento construída em paralelo com a sociedade americana contemporânea, seus preceitos e dicotomias.

A delicadeza e a lucidez de Hobsbawn ao abordar o embate vitalício entre os músicos de jazz e a indústria fonográfica são comoventes, e propiciam uma reflexão extrínseca às páginas do livro. Compreender o movimento é fundamental para separarmo-lo de causas descontextualizadas, meramente comerciais. As inconstâncias dos festivais de jazz atuais. A obviedade do repertório de Diana Krall. As canções de Baden Powell na voz de Jane Monheit. Norah Jones com standards tecnicamente impecáveis. Esperanza Spalging e Leny Andrade são raridades. Certamente, Hobsbawn as escuta.

O estilo, o ritmo, a cadência, a sonoridade e as referências do livro tornam a leitura deliciosa. Como a voz de Sarah Vaughn ou o sax de Charlie Parker. Sabor de jazz. Talvez seja este o maior trunfo de Eric Hobsbawn.

segunda-feira, 30 de março de 2009

RECORTE

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos. Está lá o corpo estendido no chão. O que me importa é não estar vencido. Não está chegando a hora, nem é hora de partir. Mas de reconhecer a queda e não desanimar. Deixar toda dor interna morrer. Levantar a cabeça e dar a volta por cima. Arrependimentos eu tive alguns, mas tão poucos, indignos de menção.

Vida louca. O amor veio e me levou com ele. E foi assim, como ver o mar, a primeira vez. Mas acabamos descobrindo que podemos vê-lo de tantas formas melhores. E assim o fiz. Sonho mesmo, a charada sincopada que ninguém da roda decifra. É minha lei, é minha questão. Sonhar mais um sonho impossível, vencer o inimigo invencível.

A partir de hoje, seu olho me olha, mas não me pode alcançar. Quem não me conhece não pode mais ver pra crer. Quem jamais me esquece não poderá me reconhecer. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Então vamos começar colocando um ponto final. Finalmente viver sem ter medo de ser feliz.


Palavras são palavras e a gente nem percebe. Mas cada um tem seu jeito próprio de se defender. Basta de clamar inocência. Consegui exatamente o que eu queria. E não há nada que me detenha. Quando fui, quando não fui, tudo isso eu sou. Agora não pergunto mais aonde vai a estrada. Deixar o meu amor crescer e ser muito tranqüilo. Vai ser, vencer, brilhar, acontecer!

Posso me orgulhar e tenho a consciência que eu tenho meu lugar. Eu sou o cara.

DIEGO PONCE DE LEON

Obs: A inspiração do recorte musical e as referências literárias são uma homenagem ao amigo de fé e irmão camarada, Vinny Werneck.

sábado, 21 de março de 2009

COTIDIANO

COTIDIANO

Todo dia nós fazemos tudo igual e postamos várias horas da manhã. A necessidade da atual geração é estar sempre exposta, numa espécie de competição por popularidade. A entrega aos meios virtuais permite a falsa idéia de sermos quistos pelos demais. Buscamos o maior número de amigos ou seguidores. Construímos blogs e gastamos vastas horas do nosso cotidiano para a alimentação dos personagens que interpretamos na tela.

Nunca foi tão fácil inflarmos nosso ego social e nos apresentarmos como quer que seja. Cabe à nossa seletiva escolha de palavras nas descrições dos perfis afora, para atingirmos os leitores exatamente como esperado. O apelo visual das ferramentas e utensílios disponíveis, como fotos e vídeos, reforça a construção desta personalidade a ser assimilada pelo nosso círculo social.

Stanislavski discorre em seu livro “A Construção do Personagem” sobre os diversos artifícios que o ator deve recorrer para a formulação perfeita do papel a ser interpretado. Mal sabia que em tempos de redes sem-fio e da geração SMS, suas técnicas seriam naturalmente aplicadas por qualquer um que intente ingressar no amplo mundo dos internautas. Arriscar posição contrária pode ser visto como suicídio social.


Mesmo diante das adversidades recorrentes, sejam quais forem e independente da intensidade, recusamos todas as atitudes analógicas. O bullying ocorre via mensagens de texto entre celulares, as fofocas recheiam as páginas pessoais, vidas são destruídas por vídeos caseiros e vizinhos tornam-se célebres no You Tube. Os nerds se passam por descolados. As gordinhas estão em forma. O aluno rebelde tem página para suas especulações desprovidas de argumento e ainda sim, registra números impressionantes de comentários em cada texto. Namoros iniciam via email e terminam pelo MSN. Mallu Magalhães, coitada, acredita que as visitas no My Space façam dela cantora.


A tragédia maior recai na máscara que vestimos. Distanciamo-nos gradativamente de nossa sombra (viva Jung!) e a cada scrap estamos cada vez mais longe de quem verdadeiramente somos. Fernando Pessoa nos alertou anos atrás, que determinada hora, a máscara estará grudada ao nosso rosto (persona). Conseguimos nos convencer de tudo que adoraríamos ser e passamos a viver em locais públicos. Os danos serão irreparáveis. Pouco importa. A liberdade de escolha diante de um número infinito de personagens é apelativa e estamos seduzidos. Gil cantou sobre a internet quando esta dava os primeiros passos e soava musical. As trilhas são inúmeras. E estão todas ilegalmente disponíveis no E-mule e no Limewire aguardando download.


Irônico pensar na vastidão do mundo da internet e no que poderia nos propiciar, quando nos submetemos e passamos a teclar cada letra passivamente. Escravos de nossos perfis, depoimentos e buddypokes.


Tomara que as músicas continuem sendo baixadas, os blogs escritos e os perfis criados. Mas que os internautas se tornem mais conscientes e possam desempenhar seus papéis com a verdade que lhes condiz. Bons tempos aqueles em que o amor era o ridículo da vida. O amor é virtual. Assim como o sexo, as amizades e tudo aquilo que você não é.


Palavras pouco românticas para os orkuteiros e twitteiros de plantão, escritos por um blogueiro, membro da mesma rede que une todos nós. Sou lido e visto. E você que não é? Deve estar morto.


Texto por DIEGO PONCE DE LEON

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Quando Eu Estou Aqui


Quando eu estou aqui...

Conservatória é, certamente, das mais pitorescas cidades no interior do estado do Rio de Janeiro. As razões são inúmeras. O título de “Capital Nacional da Seresta” é uma delas.

Cada noite, sob o luar, seresteiros percorrem as ruas enladrilhadas cantando e declamando o próprio amor. As namoradeiras se espreitam no descanso das janelas para escutar as poesias e canções. Cenas quase barrocas. Quisera poder moldá-las.

“Seu” Fernandes, 75 anos, é seresteiro querido na cidade. Dedicou os últimos 20 anos na manutenção do Museu da Seresta, que guarda um acervo musical precioso. “A memória de José Borges deve ser honrada”, diz Fernandes. Ele se refere ao primeiro cancioneiro a se instalar na cidade. No final da década de 50, José Borges e seu irmão Jubert (que ainda está vivo, aos 87 anos) se sentavam na praça e cantavam até o amanhecer. As pessoas se aproximavam, cantavam juntas. Aos poucos outras vozes se fizeram ouvidas. O poeta e seus versos. O pintor com suas telas. O violeiro e suas cordas. Nascia a tradição cultural da cidade.

Enquanto “Seu” Fernandes relata os “causos” da pequena cidade, Dona Lúcia olha-o atentamente. Interrompe-o diversas vezes. “O senhor me desculpe!”. E passa ela a contar histórias inacreditáveis ocorridas ali. Não sem antes fazer o sinal da cruz. Passava o cortejo que velava o corpo de Dona Sarita, esposa do médico da cidade. As portas do comércio se fechavam conforme os amigos e familiares de Saritinha, como era carinhosamente chamada, seguiam rumo ao cemitério. Entoavam cantigas fúnebres. “Pessoa boa. Alma pura”, lamentou Dona Lúcia. Mas retomou logo a narrativa sobre o rico folclore local.

Lendas de uma fantasia deliciosa. Estórias (uso a palavra em respeito a João Ribeiro) para comer. Um universo de escravos e senzalas. Curandeiros e milagres. Seresteiros e amores eternos. Gilberto Freyre ficaria orgulhoso. Caio Prado Jr. torceria o nariz. Pena que Dona Lúcia é logo censurada pela filha, aflita para seguir o rumo de casa e receosa pela chuva que ensaiava uma tempestade daquelas. A aula de música com Maria Olímpia, esposa de “Seu” Fernandes tinha acabado. Agarrou a mão da mãe e seguiram as duas, fugindo dos pingos que já caiam.

A música “Ontem ao Luar”, de Catulo da Paixão, tocava num rádio antigo que transmitia a programação da única estação da cidade. O aparelho arcaico parecia padecer junto à canção. O cantor soava melancólico e podia-se quase imaginar sua expressão. “Quem está cantando sou eu”, revela “Seu" Fernandes. Com o olhar emocionado me entrega a cópia de seu mais recente livro, “Jardim dos Buquês”. Lê-se nas primeiras páginas: “Em Conservatória, as serenatas e serestas revivem em nossos corações, um tempo que não existe mais.”.

No pacato vilarejo, as crianças brincam nas ruas, os namorados compram algodão doce na praça, as moças puxam a barra da saia e os bilhetinhos de amor adentram as frestas das sacadas floridas. O sino da igreja convoca todos para a missa. E eles vão cantando. Desde a porta de casa.


Adendos:

Nos fins de semana, seresteiros locais e vindos de cidades próximas atraem os visitantes e a população local com as andanças pela cidade.

Em Conservatória, todas as casas recebem nomes de canções seresteiras. Estava hospedado na “Lábios que Beijei”, bem de frente à “Emoções”. Sugestivo para uma bela crônica.

Em tempo. Qualquer morador faz questão de diferenciar a seresta da serenata. “A seresta ocorre dentro do recinto. A serenata é sempre nas ruas. Mas ambas falam de amor”.

O nome da cidade, diferente do que a maioria imagina, não tem qualquer relação com a alma musical do local. Antiga área dos indíos Ariris, Portugal, ainda na época do império, instituiu ali um cartório para registro dos indígenas, que em terras portuguesas, recebe o nome de conservatório. Daí o nome.

Abraços para Gi e Cris. Companheiras de divagações eloquentes (sem trema!) e de risadas contextuais.


Texto de Diego Ponce de Leon