terça-feira, 10 de junho de 2008

"Cucurrucucú Paloma"


"Cucurrucucú Paloma"


Caetano nasceu cego. Não conheceu o doce vermelho do morango. Não experimentou o vermelho ardente do fogo. O verde das folhas. A natureza verde. O céu azulado. O azul do amor. A vida era preto e branco. Como nos filmes de outrora. Como Glória no "Crepúsculo". Como a escuridão profanada nos tristes lábios que disseram: "Rosebud" em Cidadão Kane. Não havia cores. Nem o colorido de Frida Kahlo coloria seus olhos fechados. Questionava a vida. Sua função, suas virtudes. E a achava inútil. Nunca sorriu! Nem riu. A boca cerrada e a tristeza estampada eram fiéis companhias. Nunca sorriu...

Escutava Dolores Duran e compartilhava de sua angústia. Sentia Maysa e compartilhava de suas lágrimas. Ouvia Elizete e compartilhava da "Canção do Amor Demais". Lia com os dedos Augusto dos Anjos e compartilhava de sua repulsa e hipocondria. Era digno de pena. Misericórdia pelo rapaz cego!

Na inócua juventude conheceu Paloma. Doce Paloma. De cachos negros, pele dourada, olhos mel e lábios rosa. Cores vibrantes aos olhos inquietos de Caetano. Enamorou-se. Perdeu-se no amor. Encontrou-se na paixão. Mas seguia triste e calado. Faltava-lhe visão para declarar o contido sentimento. Mal sabia que doce Paloma nutria sentimento igual. Que aguardava ansiosamente mostrar-lhe o mundo, os filmes coloridos e as músicas de Gil. Existia algo especial na vida turva e desfocada daquele rapaz que nunca sorriu. Ela, com visão nítida e transparente, tampouco tivera razão para sorrir. Choravam, juntos, a ausência do outro. Ele desejando vê-la. Ela preferindo não ter visto.

A dor insuportável do sentimento que o coração não lhe continha, o fez atingir o inimaginável. Na presença de Paloma, numa tarde ensolarada, de um dia vívido em cores, declara-se. Paloma, repleta e sufocada de uma sensação de alívio e libertação tão intensos quanto a paixão que impulsionava seu coração à uma batida frenética, perdeu-se nas palavras e rendeu-se à uma falta de ar e a um choro descomunal. Pena que ele não pode ver doce Paloma ofegante, mas sorrindo.

Inibido pela respiração vacilante da amada e pelas lágrimas que imaginava escorrer, embebedou-se da certeza inabalável que seu amor jamais fosse recíproco. Humilhado pela exposição explícita do âmago da dor, levantou-se e correu em direção ao quarto. Não sem antes cair, derrubar-se e perder os passos. Na gaveta, empunhou-se da tesoura, que já alimentara sua imaginação anteriormente, mas que não cumprira seu papel. Deferiu um único golpe contra o próprio corpo. Não viu o sangue vermelho. Nunca sorriu!

Houve apenas tempo para que Paloma, ainda calada, lhe desse um único beijo. Como o beijo no asfalto de Nelson Rodrigues. Como uma despedida. Os lábios rosa de Paloma na sua boca. Com a mesma boca, Caetano proferiu suas últimas palavras: "Te vi, te vi, te vi. Eu não buscava à ninguém e te vi." No rosto de Caetano, um sorriso eternamente estampado. Imortalizado.


“O resto é o silêncio.”


Texto de Diego Ponce de Leon

1 comentário:

Vinicius Werneck disse...

Me senti cego. Quase perdi a visão no meio do conto, pra ver como o texto prende nossa mente e sentimentos.


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