1968 – o ano que mal começou
Passei o reveillon daquele ano em Paris. No que me compete, não poderia afirmar que na capital francesa tenha ocorrido festa similar à celebração do ano que surgia, como a que se deu na casa de Heloisa Buarque de Holanda. Zuenir Ventura abre “1968 – O ano que não terminou” (Planeta, 2008) relatando os casos e acasos daquela memorável noite, que de alguma forma, como pretende o autor, já estabelecia o tom dos acontecimentos que estava por suceder e varrer o país de uma forma avassaladora.
Passei o reveillon daquele ano em Paris. No que me compete, não poderia afirmar que na capital francesa tenha ocorrido festa similar à celebração do ano que surgia, como a que se deu na casa de Heloisa Buarque de Holanda. Zuenir Ventura abre “1968 – O ano que não terminou” (Planeta, 2008) relatando os casos e acasos daquela memorável noite, que de alguma forma, como pretende o autor, já estabelecia o tom dos acontecimentos que estava por suceder e varrer o país de uma forma avassaladora.
A história me elegeu testemunha quando permitiu que eu estivesse a caminho do Cinematéque, onde pretendia assistir qualquer filme, embora já soubesse que possivelmente Godard estaria em cartaz, no dia mais importante de sua trajetória, quando sucumbiu e fechou as portas. Ali se anunciara tempos antes, que “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, faria parte uma mostra de filmes latinos a ser montada. Eu soube do culto ao filme de Glauber no Brasil e aguardava ansiosamente por sua estréia. Não demorou para que eu fosse informado pelos dispersos estudantes que circulavam nas proximidades, do absurdo que significava o afastamento de Langlois. Quando percebi, já era militante ativo de uma manifestação que ocorria em frente ao cinema. Nesse instante, ajudei a pichar “É proibido proibir”.
Foi o sociólogo e intelectual Fernando Henrique Cardoso, por acaso meu professor na Universidade de Nanterre, que me proporcionou um panorama crítico e detalhado dos eventos que abalavam a sociedade brasileira. De tais eventos, testemunha eu não fora, mas Zuenir me fez observador atento.
Leandro Konder, filósofo da época e personagem na obra de Zuenir, foi quem melhor definiu as atribuições do livro quando afirma: “1968 – O ano que não terminou presta relevante serviço à revitalização da consciência democrática brasileira.” Num país de memória escassa e que ao desconhecer o passado, se condena a repeti-lo, Zuenir Ventura esmiúça o passado e nos condena a engoli-lo. Vítima da repressão que se instalava, Zuenir se mostra imparcial e retrata fielmente os ocorridos. Mas recorre, sem pudor e com maestria, à ironia clara, que seria referência em seus textos futuros. Célebres ou inusitados, os momentos descritos ganham formas impecavelmente vívidas e vorazes, onde os coadjuvantes são protagonistas e os detalhes, texto principal.
A morte de Edson Luís de Lima Souto, no Rio, nem se compara à agitação ocasionada em virtude de sua missa de sétimo dia. Morto irrisoriamente durante tumulto causado pelo descontentamento do aumento nos preços do restaurante estudantil Calabouço, descobre-se que foi sua missa, não sua morte e muito menos ainda sua militância (inexistente), que o fez mártir da juventude. Diante da Candelária, eu certamente teria repetido: “Inesquecível, padres.”
A Passeata dos Cem Mil é, literalmente, um capítulo à parte. Podemos transitar dentre a multidão e por alguns instantes o livro em nossas mãos quase se torna mais um cartaz dentre tantos. A rua ao lado poderia ser a Rio Branco ou a Presidente Vargas. O Teatro Municipal se ergue majestosamente nos tropeços da imaginação. Escutamos com uma clareza estarrecedora as palavras dos vários discursos de Vladimir Palmeira. Zuenir sabe a medida exata da longitude de seu texto. Pouco mais, era capaz de me levantar e esbravejar meus ideais. Ao término do capítulo, eu disse em voz alta, como se diante de uma platéia: “Foi o espetáculo mais impressionante que eu vi na minha vida”.
Por vezes, a sensação é repugnante. O estômago embrulha. Como assistir um filme de David Linch. Indigerível. A veracidade cinematográfica da assembléia no Teatro de Arena da Faculdade de Economia, na Praia Vermelha, que culminou com a vingança abusiva, imoral e subversiva no campo do Botafogo é incômoda. A sexta-feira sangrenta pungiu minha dignidade e manchou de vermelho minha impotência. Naquele dia, eu já teria atestado: “Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?”. A única cor rouge que pairava minhas afixações, era a representada por Daniel Coehn.
Caetano, Gil e Geraldo Vandré protagonizavam o ménage à trois mais interessante do cenário musical relevante. Com direito a amante de luxo: Chico Buarque. O painel musical e as transformações culturais oriundas desse, trazem ritmo e uma dinâmica melodiosa ao livro. As letras, as peças de teatro, o idealismo artístico, a nudez de Marília Pêra, a boca suja de Marieta Severo, o carcará de Bethânia, a alegria de Veloso, o domingo de Gil, as carolas de Chico e por fim, as flores de Vandré, expunham o liberalismo e a evolução do senso comum. Talvez maior herança daquele ano. Empurraram os estudantes e deram voz às suas reivindicações.
Estudantes! Caros estudantes. Invejo-os. Não que as passeatas no Quartier Latin fossem despretensiosas. Mas a causa não era minha. Teria trocado a ocupação da Sorbonne, pela da UNB. Preferia o gás lacrimogêneo. Os papéis picados do centro. As reuniões clandestinas. As sessões extraordinárias de “Roda Viva”. Justo, serem vocês o fio condutor, a linha de argumentação de Zuenir Ventura. Mas admito, no que tange o congresso da UNE em Ibiúna, ali, durante a organização eu teria sido Caetano Veloso e berraria aos quatro cantos: “ Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada!”. A perspectiva presente seria melhor se sequer existisse qualquer movimento estudantil. Deu lugar ao egoísmo acadêmico.
Jogando às favas os escrúpulos da consciência, o AI-5 foi instituído. Minuciosamente detalhado pelo autor, acompanha-se os passos de Costa e Silva no fatídico 13 de Dezembro. Pedro Aleixo tem seu legado quase heróico documentado e Jarbas Passarinho aproveita para não posar de madalena arrependida. O cenário e todos seus elementos, a iluminação, os figurinos, o elenco, a sonoplastia, o contra-regra, o preço do ingresso, os improvisos e a transparência cênica, são apresentados de forma tão assustadoramente claros, que a previsibilidade dos atos finais antes que as cortinas se fechem é soberana. Cai o pano. Quem não caiu, foi de Gaulle. Pelo menos não vi.
Quisera eu ter participado do reveillon de Helô. E lá, jamais teria dito que aquela libação significava “o fim de uma era, e não, infelizmente, começo de uma nova”. Zuenir Ventura prova o contrário. Que o diga a líder estudantil da AP, que gritava “Quero trepar! Quero Trepar!”. Dizem que ela, virgem na festa, já perdeu a conta. A fonte é segura. Essa transformação deu tempo de eu ser testemunho.
Texto por Diego Ponce de Leon