quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Sou Eu Mesmo
Sou eu mesmo
Tenho receio de escrever textos que falem sobre mim. A escrita, libertária como é, pode revelar mais do que eu gostaria. Escrevemos, antes de tudo, para nós mesmos, e, por vezes, esquecemos (ou fingimos esquecer) que outros leitores irão surgir. Assim, somos tomados por um ilusório conforto de criação. As palavras não são medidas e as frases fluem com uma naturalidade assustadora.
Sou “karioka” de nascença e ideologia. Tomei café em Paris, chás em Londres e outros “chás” em Amsterdam. Comi alfajores no Uruguai, chucrute na Alemanha e aperitivos indecifráveis na Polônia. Experimentei (entre outras coisas) a noite belga, o tango argentino e o jazz de Nova York. Nada, absolutamente nada, se compara à cerveja com torresmo que tomo na Lapa com um desconhecido qualquer.
Sou candango por imigração. E admito, constrangido, que o céu de Brasília é único. Ainda me deleito com os rosas e alaranjados que surgem no final da tarde e vistos de qualquer ponto da cidade, protagonizam parte do dia. Adoro passar pelo parque da cidade de Eduardo e Mônica, pelos campus da UNB de Honestino Guimarães e pelas quadras que serviram como abrigo para tantas Cássias e Zélias. Escutar o bandolim de Oswaldo Montenegro e Hamilton de Holanda. Como cachorro – quente na rua. Aceito e celebro a solidão dos eixos. E vibro com o calor humano do Festival de Cinema de Brasília.
Sou musical. Sou livre com a “alegria, alegria” de Caetano. Sou inexperiente diante das mulheres de Chico. Sou melhor com Elis. Sou o Rio de Janeiro com meu pandeiro na mão. Visito as favelas de Clementina, as classes médias de Nara Leão e a diplomacia de Vinícius. Visto-me da garra de Elza, carregos as armas de Jorge e como o carcará de Bethânia. Danço no Castelo das Pedras, na MelkWeg, no Studio 54 e no Clube do Choro.
Sou leitor. Ainda não li “Crime e Castigo” o suficiente para discuti-lo com propriedade. Não evoluí o suficiente para compreender Clarice, e nem estudei o bastante para me aliar a Sérgio Buarque de Holanda. Viajei com Amyr Klink, morri com Machado e ressuscitei com Vargas Llosa e todas as suas meninas más. Passei pelo inferno, purgatório e paraíso de Dante e experimentei os sete pecados capitais. Fui personagem de inúmeras “comédias da vida privada” e encaro “a vida como ela é”. Refiz diversas vezes o caminho de Santiago de Compostela e me afeiçoei pelos sertões de Euclides e pelas veredas de Guimarães.
Sou amante. Deitei-me com a Anita de Mário Donato. Participei da “pornopolítica” de Jabor. Encantei-me com a Lolita de Nabokov. Até o triângulo amoroso de “Política”, de Adam Thirlwell, eu vivi.
Sou militante. Conheço a história para não repeti-la. Esbravejei textos de Marcuse na passeata dos “cem mil”. Dei as mãos à Truffaut na Cinémathèque. Chorei pela morte de Edson Luis de Lima Souto. Fui à Auschwitz. Pausa. Éramos mais de 20 quando invadimos e tomamos posse de um apartamento em Amsterdam que deveria ser ocupado pelos amigos Antônio e Alícia. Antônio morreu. Quero percorrer os "diários de motocicleta". Aprendi a repugnar qualquer preconceito e enaltecer as diferenças. Critico o ordinário.
Sou amigo. Imperfeito. E ciente de ser quisto, não pelas imperfeições, mas apesar delas.
Sou eu mesmo, “a charada sincopada que ninguém da roda decifra”.
Muito prazer.
Texto por Diego Ponce de Leon
terça-feira, 6 de abril de 2010
Maria Gadú me salvou noite passada
“As coisas não andavam bem”. Kevin Johansen inicia uma de suas canções exatamente desta maneira. Farei o mesmo.
As coisas não andam bem. Mas não me importo. Outro dia tive minha vida salva pela Maria Gadu. Quem?! Aquela que não passa dos 25 anos e está com música na novela. Usa corte de cabelo arrepiado e faz a linha cantora revelação lésbica pós moderna. Não é a Céu. Céu é a melancólica. Se arrasta toda pra cantar. Nem a Roberta Sá. A que canta sambas, mas insiste em ser chamada de cantora de MPB. A Mallu Magalhães vocês já identificam. Adora homens barbudos e estrelas no rosto.
Eu não consigo lembrar o nome da música que faz parte da trilha sonora do folhetim, mas Gadú tem sido lembrada pelas versões inusitadas de “Ne Me Quittes Pas” e “Baba Baby”. A primeira um clássico do Jacques Brel imortalizado nestas terras tupiniquins na voz de Maysa e reinserida em nossos ouvidos graças a uma minissérie baseada no livro “Presença de Anita” de Mario Donato, de nome homônimo. A outra, um misto de saliva e inocência perdida despretensioso, que Gadú quase nos faz crer que leva a sério, vide a profundidade (trocadilho intencional) de seu canto. Se ainda não souber de quem se trata, o Google agradece a visita.
Pois eis que Gadú esteve na capital dias destes e se apresentou para uma pequena platéia de 300 pessoas. Eu entre elas. Fui para o show sem grandes esperanças. Ou sem grandes expectativas, para manter o texto lírico com uma gratuita referência a Charles Dickens (ando obcecado com a literatura inglesa). Duas horas antes eu estava trocando vocábulos de baixo escalão com outros motoristas intransigentes num engarrafamento que deixaria a Rio Branco e a Paulista orgulhosas, enquanto tentava explicar para minha desavisada mãe quem seria o ser que responde por Maria Gadú e que merecia minha atenção naquela noite. Tentativa frustrada. Segui para o show.
Os dias anteriores merecem alguma atenção, até para que eu possa justificar a primeira frase deste texto. “As coisas não andavam bem”. Já pensou se Tolstoi tivesse dado curso a Ana Karênina (Anna Karienina, na transliteração direta para o alfabeto latino) sem qualquer referência àquela primeira frase do romance (que versa sobre as famílias infelizes) que por si só é um pilar da literatura mundial?! Não faria sentido. Então, não pretendo importuná-los com todas as tragédias que se abateram e fazê-los chorar como se pudessem escutar Celine Dion ao fundo. Mas preciso que saibam que as coisas não andavam bem. Afinal, como teria sido salvo se não houvesse motivos para tal?! Nem sempre as coisas andam bem. Curso natural da vida. Joseph Campbell nos ensinou e aprendeu quem quis. Nem sempre as coisas seguirão satisfatoriamente Faz parte da jornada a descida. Sem ela, nada de subidas. E subir não faz mal à ninguém. Leiam Nietzsche.
O show transcorreu exatamente como eu imaginava. Bela voz. Belos dedos. Sapatos maiores do que eu imaginava (trocadilho intencional 2). Nenhuma presença de palco (ela acabou de começar). Timidez exarcebada (que a confere certo charme) e penteado parecido com o meu. Eu sempre imaginei que seria salvo por outra Maria. Talvez Maria Bethânia que me recitaria versos de Pessoa pelo resto da vida. Ou Maria da Conceição, que responde como Elza Soares, com suas lições de vida, fome e balacobaco aos 70 anos. Maria Rita quem sabe, já que não deu tempo da mãe vir ao meu resgate. Mas foi Maria Gadú quem me estendeu a mão. E a boca.
No final do show, fui cumprimentá-la. Elogiei-a com verdades e mentiras. Delicada, ela sorriu. Levantei-lhe o rosto que insiste em estar levemente inclinado para a direita e a beijei. Naquele momento, éramos eu e ela. E pude experimentar dos mesmos lábios que balbuciaram shimbalaiê minutos antes. Não sei porque o fiz. E ela não soube explicar porque o recebeu. Como no beijo do asfalto de Nelson, nos despedimos. E tenho certeza de que não voltaremos a nos ver.
Sei bem as razões pelas quais as coisas não andavam bem. Mas não posso e nem devo explicar de que forma Maria Gadú me salvou. Adoro não saber. Adoro as coisas não ditas. Aposto que vocês estão adorando a sensação de não saberem se o último parágrafo de fato aconteceu. Soa surreal, certamente. Improvável. Mas, seria impossível? Respondo apenas que fui salvo.
Agora começo a subir.
Texto por Diego Ponce de Leon
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